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domingo, 5 de agosto de 2012

Relatos do continente gelado

Antropólogo da UnB passa seis meses convivendo com pesquisadores e militares brasileiros na Antártida e produz estudo sobre as relações humanas no extremo sul do planeta
Marcela Ulhoa

Quando o assunto é ciência na Antártida, é comum que se pense em estudos na área da oceanografia, biologia ou climatologia. Entretanto, nos seis meses que Luís Guilherme Resende passou no continente gelado, sua pesquisa de doutorado pela Universidade de Brasília (UnB) teve um foco diferente. Resende foi o primeiro antropólogo a fazer um estudo etnográfico da presença humana no ambiente de condições climáticas extremas.

"Para a antropologia, a ocupação da Antártida é interessante porque não passa por uma estratégia de dominação. A colonização da região foi um domínio ambiental em favor dos desejos humanos, de sua curiosidade", explica Resende. Juridicamente, a área está sujeita ao Tratado da Antártida, pelo qual as nações que reivindicam territórios no continente (Argentina, Austrália, Chile, França, Noruega, Nova Zelândia e Reino Unido) suspendem os pedidos, deixando o continente livre para estudos. Nas bases brasileiras, a marinha tem uma posição hierárquica mais alta, justificada pela necessidade de segurança. "É nesse ponto que a lógica se inverte. Os militares dominam aspectos que não têm nada a ver com segurança. Toda a administração passa por eles", conta o antropólogo. Os militares são enviados à Antártida em missão que dura um ano. Passado esse período, uma nova equipe da Marinha Brasileira chega. Para afinar a convivência entre civis e militares, todos passam por treinamento no Brasil.

O convívio entre civis, militares e alpinistas (profissionais essenciais nos acampamentos) costuma ser tranquilo. "De um modo geral, a relação é muito boa. Pelo que eu já pude conversar com pessoas de outras estações, eu acredito que o fato de haver regras bem estabelecidas contribui para que haja uma convivência saudável", defende o capitão-de-fragata Alexey Bobroff Daros, chefe do Grupo-Base 2010/2011 da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF). Para realizar seu trabalho, Luís Guilherme Resende foi a campo três vezes entre 2010 e 2012. Ele observou a rotina e a convivência entre os diferentes atores na estação, nos navios e nos dois acampamentos brasileiros. "Nessa região, pesquisar é também habitar, mesmo que temporariamente. Há pouca distinção entre o mundo de trabalho e a vida cotidiana", diz. Confira a seguir alguns dos pontos que mais chamaram a atenção do pesquisador.

É o navio que articula todas as formas de estar na Antártica. "Além de ser o meio de acesso aos acampamentos e à Estação, ele é o laboratório e a morada de alguns pesquisadores, como os oceonógrafos, que ficam quase sempre embarcados." Luís Guilherme Resende conta que esse também é o local em que as regras militares, para os civis, se mostram mais rígidas. Isso porque os navios brasileiros que servem na Antártida — o Ary Rongel e o Almirante Maximiano — pertencem à Marinha do Brasil. "O navio é o local de maior choque para os civis, pois eles têm de se adequar ao ambiente militar. Tem hora para tudo, e a palavra final é sempre do almirante."

Às 5h (o horário seguido lá é o de Brasília), pesquisadores e militares são despertados pelo toque da alvorada, ritmo que marca o início das atividades do dia. No começo de todas as manhãs, as condições meteorológicas são transmitidas via rádio. Esse momento é crucial para o trabalho, pois, a equipe só pode definir as ações a serem desempenhadas de acordo com o clima. "Para avistar baleias, por exemplo, é necessário ter boas condições de navegação", conta Resende.

Para os civis, o navio é como um hotel, já que eles não fazem os serviços gerais de manutenção e limpeza. Além disso, há o conforto do banho quente e da comida preparada por cozinheiros. As refeições são servidas em locais diferentes da embarcação de acordo com as patentes. Os cientistas comem separados dos marinheiros. Os alojamentos também são separados: oficiais com oficiais ou cientistas, marinheiros com marinheiros. Há um local público denominado Praça D"Armas, onde se pode cantar no caraoquê, conversar ou realizar qualquer outra atividade de entretenimento. Esse espaço, entretanto, é exclusivo para oficiais e cientistas.

Os cientistas que deixam o conforto dos navios e da estação para dormir em barracas são aqueles que precisam realizar sua coleta de dados em locais afastados das bases. "A quantidade de pontos fixos que um país mantém na Antártida depende do quanto ele investe em pesquisa na região. Quanto maiores forem os recursos, melhor será a logística", avalia o pesquisador. A vida nas tendas é dura. A comida é enlatada. Não há cozinheiro, muito menos banho quente. As notícias chegam via rádio diariamente às 21h, quando acampamentos e estações de rádio trocam informações. "É quando sabemos o resultado do Fla-Flu", brinca Resende. Mas às vezes as notícias não são boas. "Quando estava acampado, nós recebemos um alerta de tsunami por causa do terremoto no Chile." O antropólogo conta que não havia muito o que fazer, já que o navio mais próximo estava a 10 horas dali.

O acampamento é o único local em que não há presença dos militares. Os alpinistas são os responsáveis por manter a segurança. "Só o Brasil obriga a ter alpinistas em seus acampamentos. Como a marinha não tem experiência em terra e sabe lidar pouco com a neve, eles chamaram o Clube Alpino Paulista para auxiliar nas missões." Por isso, eles têm permissão para desativar o acampamento caso seja necessário. Esses profissionais também ajudam alguns cientistas na coleta de dados, como os paleoclimatólogos, que precisavam subir as montanhas para realizar seus estudos.

"No acampamento, você não está confinado. Ao mesmo tempo que precisa lidar com situações difíceis, você tem a sensação do sublime, da sua pequenez diante da natureza", finaliza o especialista da UnB.

A Estação Antártica Comandante Ferraz, atingida por um incêndio no início do ano, foi a casa de Luís Guilherme Resende por três meses. Ali, os civis têm de participar das atividades de limpeza e organização. "Todos os dias, é formada uma equipe de manutenção composta por um militar, um civil do arsenal da marinha e um civil pesquisador. O grupo fica responsável por fazer o pão do café da manhã, limpar a cozinha, pôr a mesa do café, lavar a louça, retirar o lixo...", conta. "Nesse dia, cientista não é cientista", esclarece o antropólogo.

Já os militares que trabalham na estação raramente desempenham as funções para as quais foram treinados. Na base, um mergulhador de combate, por exemplo, dificilmente vai atuar em sua função original. Mesmo assim, ele é valorizado. "Consertar um encanamento é tão importante quanto implantar uma bomba, porque aquela é a missão dele, tornar as condições favoráveis à pesquisa."

A noite na estação é usada para relaxar. Todos se reúnem para ver filmes, jogar videogame ou ver novelas. É possível também apreciar cervejas e vinhos. O abastecimento de produtos é feito por navio ou por carga lançada de paraquedas. 
Fonte: Correio Braziliense

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